Celebrando seus 35 anos, esta edição da CasaCor reúne projetos de 68 renomados profissionais distribuídos em mais de 10mil m² dentro do ícone do modernismo paulistano, o Conjunto Nacional. Sob o tema “Infinito Particular”, a mostra desse ano se concentra no acúmulo temporal, na história contada e que contamos sobre nós mesmos. Nesse universo de formas de habitar o mundo, e dos rastros que deixamos ao nosso redor, desde a gordura dos dedos nas paredes até a poeira que trazemos na sola de nossos sapatos, estamos sempre buscando algo que é só nosso, inesgotavelmente próprio.
Como na edição anterior, a mostra ocupa um espaço de forte urbanidade. Devorando os entremeios do Conjunto Nacional, a CasaCor é também um passeio pela memória material do edifício, especialmente sua laje superior, fechada há quase dez anos para o grande público. O projeto de implantação, do escritório FGMF busca dar vazão a todo potencial da planta livre de Daniel Libeskind. Durante o percurso, o concreto surge vez ou outra entre os espaços decorados, que também são rasgados pelas janelas em fita que observam, placidamente, a Avenida Paulista. A praça Paulista Augusta, de Catê Poli e João Jadão, por exemplo, tira partido de uma das apuradas esquinas do edifício, potencializando as cortinas de vidro que circundam seu perímetro.
Esta edição também se aprofundou sobre uma tendência que surgiu com força no ano anterior, quer seja, uma linguagem minimalista que explora texturas, materialidade e “cinquenta tons de branco”, indo do cinza ao off-white, construindo espaços cuja harmonia e elegância buscam uma narrativa sintética de abafamento das contradições da vida nervosa na cidade. Dentro dessa linguagem de contenção, se destacam a Casa Cosentino Embaúba, de Lucas Takoaka e o Sertão Portinari, do escritório NJ+.
No espaço assinado junto à Cosentino, Takoaka explora a gradação da luz, ora natural, ora artificial, e seu efeito sobre diferentes superfícies. O jardim de inverno é abraçado por um estômato, trazendo pontos de verde e um aconchego especial à sala de estar-jantar que nos apresenta.
E como não poderia faltar, Nildo José assina um dos espaços mais interessantes do evento. Seu grande salão procura explorar temáticas ligadas à vida sertaneja, inspirado pela obra de Cândido Portinari. A rusticidade dos materiais e a secura das cores é contrabalanceado pela projeção de fundo do mar no chão, e pela parede de cerâmicas azuis. Mas o que chama mesmo nossa atenção é a parede corrugada que permeia todo o espaço. Uma composição de lajotas Brick Senses Decor, perfiladas tal qual as madeiras de uma parede de taipa, que rememora os processos construtivos do sertão brasileiro, simples, porém de grande expressividade material.
Em contraponto a essa linguagem mais estoica, alguns espaços se lançaram a buscar expressões dotadas dos deliciosos vícios do cotidiano particular, como é o caso da Casa LG Magenta, de Otto Felix.
Usando muito habilmente os tijolos de vidro, encabeçados e rodeados por uma translúcida cortina, Felix recria uma sala de estar que mais lembra um clube de cavalheiros, com o recobrimento dos pilares do Conjunto Nacional com cerâmicas de tijolinho verde brilhante. Fazendo coro ao vidro e espelhos posicionados estrategicamente, vemos as superfícies televisivas da LG, de forma que a tecnologia aparece muito mais como ambiência, do que como índices do inevitável progresso humano. Em suma, o espaço nos diz que a tecnologia está aqui hoje, em todo canto da casa, mas nem por isso deve definir o nosso morar. Não há contradição nenhuma em ter uma poltrona dos anos 1970 ao lado de uma televisão de plasma, por exemplo.
Aliás, os anos 1970, e algo dos 1980, estiveram muito fortes na mostra. Ao lado do uso da madeira, ora crua, ora super escura, e de revestimentos naturais, como pedras e cerâmicas de fundo neutro, a cor apareceu, de maneira geral, em uma paleta à la Pucci, mas em tons mais queimados e rebaixados. Os tapetes presentes no suntuoso quarto Espelho da Alma de Bia Quinelato, ou mesmo o criativo e compósito mobiliário do loft Raízes – que replica da porta do banheiro até o puxador da mesa lateral uma mesma esfera dourada – exploram verdes, laranjas e azuis. Ainda na temática setentista, temos o apartamento Casa ETÉ Duratex, do Todos Arquitetura, com um “sunken sofá” marrom, do tipo que encontrávamos nas casas de nossa tia naquela viagem à praia.
Década seguinte, toda e qualquer sobriedade é abandonada pela extasiante Artsy Lounge, de Sig Bergamin. Um espaço imberbe em personalidade, com uso de cores saturadas e claro traço autoral, faz até mesmo da planta da mesa de centro uma escultura, em um forte tônus pop.
Mas o ponto alto mesmo da mostra foi a Casa Coral de Marcelo Salum. Seu espaço biográfico homenageia os designers Attilio Baschera e Gregorio Kramer, um dos casais mais icônicos e longevos do design brasileiro. Salum traz um competente e apaixonado estudo do trabalho do casal que inaugurou a Larmod, uma das principais lojas de estamparia e design do Brasil nos anos 1970 e 1980, e cujos arcos e boiseries do teto reaparecem nesta casa como uma sutil citação arquitetônica.
A Casa é repleta de citações da vida do casal, como no piano de Gregório, ou na mesa de jantar (na verdade duas mesas) que, como comenta o próprio arquiteto, replica o sentido móvel do compartilhar a ceia e trabalhar na mesma superfície. A Casa Coral é, portanto, uma fábrica de memórias. A potência com a qual o arquiteto transforma a Cor do Ano da Coral – Melodia Suave – em um relato afetivo de uma vida conjunta só é possível com o uso complementar das cores. Nesse sentido, coube ao vermelho “Desfile de Carnaval” fazer vibrar o azul tenro da Coral, contraposto aqui e ali por um tom de azul mais intenso e profundo, ou por tons rebaixados do vermelho. Estamos falando de uma valsa, entre o quente e o frio, com suas respectivas gradações, inspiradas pelos tecidos que Attilio e Gregório desenvolveram para a Donatelli em 2015, notadamente a estampa de abacaxi. A fruta rememora toda uma trajetória no design têxtil que tinha como norte a valorização da brasilidade.
Já no terraço do Conjunto Nacional, ao redor da famosa abóboda de vidro que coroa a rampa em espiral, encerramos o circuito no intimista Restaurante 00:00, de Ricardo Abreu. A cenografia ruínica impressiona pela efusão com a qual reproduz algo entre termas greco-romanas e o santuário de um oráculo clássico. Dominado por musgos e plantas diversas, o espaço rebaixa a excitação de se estar em plena Paulista e faz um convite a um almoço ou janta ditados pelo tempo do prazer, não da subsistência.
Por fim, e terminando pelo começo, precisamos destacar a positiva surpresa que é o espaço de recepção I´M PRESS IMPRESS, de Karol Suguikawa. Uma das mais pulsantes designers da contemporaneidade, suas obras são marcadas por uma vivência como mulher trans que subverte e repensa os estereótipos de gênero, explorando uma linguagem irônica, intimista e surrealista. O lounge, que dá as boas-vindas à imprensa e aos visitantes da mostra, é uma composição de algumas das peças mais famosas da designer, como o divertido Banco Tetta, executado em três materiais e técnicas diferentes (madeira maciça, CNC e mármore) e a potente Poltrona Vértice.
A CasaCor deste ano celebra assim as idiossincrasias particulares que todos nós carregamos, e que inevitavelmente procuramos projetar sobre tudo aquilo que nos cerca e nos abriga. Se reconhecer na casa em que se habita, seja ela o corpo ou a cidade, é um dos desafios mais urgentes desse período tão ambíguo pelo qual passamos, do fim de uma pandemia, que ainda assim existe e persiste, pedindo de nós paciência, mas também a vontade de retomar o sabor do dia a dia.
SERVIÇO
CasaCor São Paulo 2022
Onde: Conjunto Nacional, Av. Paulista, 2073 - Cerqueira César
Quando: de 05 de julho a 11 de setembro de 2022
Horário de funcionamento: Terça a Sábado das 12h às 22h, e Domingos e Feriados das 11h às 21h
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